Quando o streaming da Netflix nos apresenta uma nova série espanhola, já existe uma certa expectativa implícita. O sucesso recente de produções como “La Casa de Papel” e “Elite” pavimentou um caminho de qualidade para thrillers espanhóis na plataforma.
Neste cenário de expectativas elevadas, surge “O Jardineiro”, uma série que se propõe a explorar os limites entre o amor obsessivo e a morte calculada, criada por Daniel Balaguer e produzida pela Bambú Producciones.
Fiquei imediatamente intrigado pelos primeiros episódios desta produção que rapidamente conquistou o Top 10 da Netflix em diversos países. Afinal, o que faz uma série sobre um assassino de aluguel disfarçado de jardineiro cativar tantos espectadores simultaneamente? A resposta, como descobri ao longo das seis horas de narrativa, está no delicado equilíbrio entre tensão psicológica e drama romântico que a série cultiva com precisão quase cirúrgica.
“O Jardineiro” nos apresenta Julián, um assassino profissional que se infiltra como jardineiro na casa de sua próxima vítima, mas acaba desenvolvendo sentimentos pela filha do alvo. Esta premissa, embora não revolucionária, é executada com uma sutileza que transforma o que poderia ser apenas mais um thriller previsível em uma análise profunda sobre redenção, culpa e a possibilidade de transformação humana.
A série se desenvolve em uma Madrid contemporânea, mas com uma estética que remete a um tempo menos digital e mais intimista. Os jardins meticulosamente cuidados por Julián funcionam como uma metáfora visual para o cultivo de sua própria humanidade, que floresce em meio ao terreno árido de sua profissão mortal.
Como minissérie de oito episódios, O Jardineiro Netflix beneficia-se de uma estrutura compacta que evita diluições desnecessárias. Cada episódio de aproximadamente 45 minutos funciona como um canteiro bem delimitado, onde novas revelações são plantadas e antigas questões são podadas no momento exato.
O que mais me impressionou foi como a série dosou perfeitamente seus momentos de tensão. Ao contrário de muitos thrillers que dependem exclusivamente de cliffhangers bombásticos, aqui os ganchos entre episódios são mais psicológicos que explosivos. Isso cria uma experiência de assistir que é tanto intelectualmente estimulante quanto emocionalmente envolvente – uma combinação rara no universo dos thrillers de streaming.
A narrativa alterna habilmente entre o passado e o presente, não como muleta para preencher tempo, mas como ferramenta genuína para desenvolver a complexidade psicológica do protagonista. Essa técnica, quando mal executada, pode frustrar o espectador. Aqui, porém, cada flashback sente-se necessário e revelador.
Daniel Balaguer demonstra uma sensibilidade particular ao unir elementos de thriller psicológico com drama romântico. O que facilmente poderia descambar para o melodramático permanece ancorado em uma realidade palpável graças às escolhas estilísticas do diretor Pablo Barrera, que privilegia o silêncio e os olhares em vez de diálogos explicativos.
A influência de thrillers espanhóis anteriores é perceptível, mas “O Jardineiro” encontra sua própria voz ao adicionar camadas de contemplação existencial que raramente vemos em produções deste gênero na plataforma. Há momentos que lembram o melhor de Almodóvar em sua fase mais contida, especialmente na forma como a câmera captura a intensidade emocional em espaços fechados.
A decisão de manter o ritmo mais lento e meditativo foi um risco calculado que, na minha opinião, rendeu frutos. Em uma era de narrativas frenéticas, a série nos convida a contemplar o crescimento das emoções e motivações com a mesma paciência necessária para ver um jardim florescer.
A força de “O Jardineiro” reside fundamentalmente em suas interpretações. Alejandro López entrega um Julián contido e multifacetado, cujo rosto estoico esconde um tumulto interior que transpira sutilmente através de microexpressões cuidadosamente calculadas. É como observar um iceberg – o que vemos é apenas uma fração da massa emocional submersa.
Eva Santolla, como Claudia (a filha do alvo), transcende o papel potencialmente ingrato de interesse romântico para criar uma personagem de profundidade surpreendente. A química entre os protagonistas funciona precisamente porque não é instantânea nem óbvia – ela cresce organicamente como uma planta que precisa de tempo para revelar suas verdadeiras cores.
O desenvolvimento das relações periféricas também merece destaque. Os personagens secundários não são meros adereços narrativos, mas indivíduos com motivações próprias que influenciam diretamente os arcos dos protagonistas. Particularmente memorável é o personagem de Martín (Luis Bermejo), cujo pragmatismo amoral serve como contraponto perfeito ao despertar ético de Julián.
A transformação gradual do protagonista de máquina de matar para homem em busca de redenção é conduzida com uma nuance que raramente vemos em thrillers contemporâneos. Não há momentos de iluminação súbita, mas sim um lento despertar moral que reflete o próprio processo de cultivar – paciente, incerto e frequentemente doloroso.
Visualmente, “O Jardineiro” é um banquete para os olhos sem jamais ser ostensivo. A fotografia de Josu Inchaustegui abraça tons terrosos e verdes que refletem tanto o ambiente literal dos jardins quanto o renascimento metafórico do protagonista. A luz natural predomina, mas as cenas noturnas são trabalhadas com uma escuridão que nunca obscurece completamente – sempre há um lampejo de claridade, assim como há sempre uma centelha de humanidade no assassino protagonista.
O design de produção merece aplausos pelo contraste entre os ambientes. A mansão onde Julián trabalha como jardineiro exala uma opulência fria, enquanto seu próprio apartamento minimalista reflete sua existência funcional. Os jardins, por sua vez, tornam-se personagens por si mesmos – espaços de transformação onde a beleza e a morte coexistem num ciclo natural.
A trilha sonora composta por Federico Jusid complementa perfeitamente a narrativa visual. Em vez de sinalizar emoções de maneira óbvia, a música funciona como uma camada atmosférica que intensifica a tensão psicológica. Os momentos de silêncio são igualmente importantes, permitindo que o espectador habite o espaço mental do protagonista sem interferências.
A direção de Pablo Barrera demonstra confiança ao resistir à tentação de aceleração desnecessária. As cenas de violência, quando ocorrem, são mostradas com uma economia de movimento e enquadramento que amplifica seu impacto. Não há glamourização da morte – cada ato violento tem peso e consequência, tanto para a vítima quanto para o perpetrador.
A edição merece menção especial pela forma como manipula o tempo narrativo. Os cortes entre presente e passado são tão fluidos que às vezes nos perdemos momentaneamente entre os tempos – um efeito que parece intencional e reflete a própria confusão moral do protagonista, preso entre quem foi e quem está se tornando.
“O Jardineiro” utiliza seu conceito central – o cultivo de plantas – como metáfora potente para explorar temas universais. A ideia de que cuidar de um ser vivo requer paciência, atenção e responsabilidade espelha o despertar da consciência moral de Julián. Como ele mesmo diz em um momento crucial: “Algumas plantas precisam morrer para que outras possam viver” – uma reflexão sobre escolhas morais que reverbera ao longo da narrativa.
A série também aborda com inteligência a dissonância cognitiva necessária para que alguém mantenha uma profissão mortal enquanto desenvolve conexões humanas genuínas. Não há soluções fáceis ou redenção instantânea – a transformação de Julián é dolorosa precisamente porque é autêntica.
O tema da identidade percorre toda a série como uma raiz subterrânea. Quem somos quando ninguém está olhando? Podemos realmente mudar nossa natureza ou apenas cultivar novas facetas de quem sempre fomos? Estas questões existenciais são exploradas sem didatismo, permitindo que o espectador forme suas próprias conclusões.
A questão da classe social também está presente, embora de forma mais sutil. O contraste entre Julián como trabalhador (ainda que disfarçado) e a família abastada para quem trabalha cria uma dinâmica adicional que enriquece as interações entre os personagens e adiciona camadas ao romance central.
Assisti “O Jardineiro” em dois dias, mas, em retrospecto, talvez a série se beneficiasse de um consumo mais pausado. Como o próprio ato de jardinagem, esta é uma narrativa que valoriza a contemplação e cujas sutilezas podem ser apreciadas mais profundamente quando se dá tempo para que as ideias germinem entre os episódios.
A estrutura narrativa funciona bem tanto para maratonas quanto para visualização semanal, mas certos detalhes visuais e desenvolvimentos de personagens ganham profundidade quando temos tempo para processá-los. O “fator vício” está definitivamente presente, especialmente nos episódios centrais, mas esta não é uma série que depende de ganchos sensacionalistas para manter o interesse – seu apelo é mais duradouro e intelectualmente estimulante.
O ambiente ideal para assistir seria uma noite tranquila, talvez com uma xícara de chá e sem distrações – um setting que permita mergulhar completamente na atmosfera contemplativa que a série constrói tão cuidadosamente.
No panorama atual de thrillers espanhóis na Netflix, “O Jardineiro” se destaca pelo ritmo deliberadamente mais contido. Enquanto séries como “La Casa de Papel” apostam na adrenalina constante, esta produção tem mais em comum com a tensão psicológica de “El Inocente”, embora com uma paleta emocional mais restrita e focada.
O que esta série traz de genuinamente novo para o formato é a maneira como integra o ambiente natural ao desenvolvimento psicológico dos personagens. Os jardins não são meros cenários, mas manifestações externas do estado interior dos protagonistas – uma abordagem que adiciona profundidade visual a cada cena.
Se comparada a outras histórias de assassinos profissionais com crises de consciência, “O Jardineiro” destaca-se pela ausência de glamourização. Julián não é um anti-herói carismático como tantos outros do gênero, mas um homem genuinamente dividido entre a eficiência profissional e o desejo humano de conexão.
“O Jardineiro” é como um vinho que melhora com o tempo – inicialmente parece familiar, mas desenvolve complexidades inesperadas à medida que respiramos sua atmosfera. A série não é perfeita – há momentos em que o ritmo contemplativo beira o languidez, e certas reviravoltas no final parecem um pouco forçadas para gerar tensão adicional.
No entanto, as virtudes superam amplamente as falhas. O desempenho contido e poderoso de Alejandro López, a cinematografia que transforma jardins comuns em paisagens emocionais, e o tratamento maduro dos dilemas morais fazem desta uma adição valiosa ao catálogo da Netflix.
Atribuo à série 4 de 5 estrelas – uma produção que se destaca não por reinventar a roda do thriller psicológico, mas por executar suas convenções com precisão e adicionar camadas de profundidade que ressoam muito após os créditos finais.
“O Jardineiro Netflix” é especialmente recomendado para apreciadores de thrillers psicológicos que valorizam desenvolvimento de personagem sobre ação explosiva, e para quem busca narrativas que exploram nuances morais em vez de conflitos simplistas entre bem e mal.
Como as próprias plantas que Julián cultiva com tanto cuidado, esta série exige paciência do espectador, mas recompensa abundantemente aqueles dispostos a esperar pelo florescimento de sua narrativa peculiar e instigante.