O Coração Delator: Confissões de uma Mente Obcecada

“O Coração Delator” de Edgar Allan Poe, publicado em 1843, emergiu durante uma fase particularmente conturbada da vida do escritor – período em que enfrentava sérios problemas com bebida e lutava contra a depressão intensificada pela tuberculose que acometia sua jovem esposa Virginia.

Esta narrativa breve exemplifica magistralmente os temas recorrentes na obra de Poe: a linha tênue entre sanidade e loucura, o peso corrosivo da culpa e os aspectos irracionais que governam secretamente nossas mentes.

Um fato pouco conhecido é que esta obra-prima da literatura foi inicialmente descartada por vários editores que a julgaram excessivamente perturbadora para o público da época. Ironicamente, com o passar do tempo, tornou-se uma das criações mais célebres de Poe, inspirando incontáveis adaptações artísticas ao longo dos séculos.

Conto “O Coração Delator” de Edgar Allan Poe

Ouçam! Prestem atenção, e eu narrarei como tudo ocorreu. Verão e ouvirão por si mesmos como minha mente funciona perfeitamente.

Nem eu mesmo saberia explicar como tal ideia surgiu inicialmente. Não havia razão lógica para minhas ações. Não nutria ódio pelo ancião; pelo contrário, sentia afeição por ele. Jamais me prejudicou. Sua fortuna não me interessava. Acredito que tudo começou por causa daquele olho. Lembrava o olho de um abutre, similar ao daqueles pássaros repugnantes que vigiam pacientemente enquanto suas presas agonizam, para depois se lançarem sobre carcaças e dilacerá-las para seu festim. Quando o velho me fitava com aquele olho repulsivo, uma corrente glacial percorria meu corpo; meu próprio sangue parecia congelar. Foi assim que, após muito refletir, decidi eliminar o velho permanentemente e livrar-me daquele olhar perturbador!

Suspeitam que sou insano? Observem que nenhum desequilibrado seria capaz de arquitetar um plano como o meu. Deveriam ter testemunhado meus atos. Durante aquela semana inteira, demonstrei extrema cordialidade com o velho, sendo extraordinariamente atencioso e gentil.

o coracao delator
O olhar obsessivo que despertou o pesadelo no conto clássico de Poe. Imagem: Portal Sobrenatural

A cada noite, próximo das doze badaladas, girava lentamente a maçaneta do quarto dele. Quando a abertura era suficiente, deslizava primeiramente minha mão, seguida de minha cabeça. Em minhas mãos trazia uma lanterna completamente envolta em tecido grosso para que nenhum raio luminoso escapasse. Permanecia imóvel como uma estátua. Posteriormente, com máxima delicadeza, erguia uma pequena dobra do tecido, permitindo que apenas um finíssimo feixe de luz atingisse precisamente aquele olho. Repeti esse ritual por sete noites consecutivas, sempre no mesmo horário. Contudo, o olho permanecia fechado durante meu escrutínio, impossibilitando a execução de meu intuito. Afinal, não era contra o ancião que minha aversão se dirigia, mas especificamente contra aquele olho maligno que me atormentava.

Diariamente, pela manhã, visitava seu aposento e, com voz acolhedora e amistosa, indagava sobre seu descanso noturno. Jamais suspeitaria que, invariavelmente à meia-noite, eu o observava durante seu sono.

Na oitava noite, excedi meus próprios limites de cautela ao manipular a porta. Um relógio comum avançaria seus ponteiros com maior velocidade que meus movimentos naquela ocasião. Nunca anteriormente experimentara tamanha sensação de controle e previsão; estava absolutamente confiante no êxito de minha empreitada.

O idoso repousava sem qualquer pressentimento sobre minha presença em sua soleira. Subitamente, movimentou-se no leito. Poderiam imaginar que me assustei, mas estão enganados. A penumbra em seu quarto era impenetrável. Tinha plena certeza de que ele não poderia visualizar a porta entreaberta. Prossegui empurrando-a gradualmente. Introduzi minha cabeça no recinto. Em seguida, minha mão segurando a lanterna encoberta. Inesperadamente, o ancião ergueu-se em sobressalto, exclamando: “Quem se aproxima?!”

Mantive-me completamente estático. Durante sessenta minutos não ousei sequer respirar. Não percebi qualquer movimento indicando que retornara à posição deitada. Permanecia sentado, vigilante. Logo captei um som peculiar, um gemido abafado de pavor emanando do velho. Compreendi então que ele se encontrava ereto em sua cama, dominado pelo terror; estava ciente de minha presença no aposento. Embora seus olhos nada enxergassem e seus ouvidos nada escutassem, ele sentia minha presença. Havia percebido que a Morte o espreitava.

Com extrema lentitude, gradualmente, elevei o tecido que cobria a lanterna até que um minúsculo raio luminoso se projetasse diretamente naquele olho abutrino! Encontrava-se escancarado – completamente dilatado – e minha fúria intensificou-se ao perceber que me fitava diretamente. O rosto do velho permanecia invisível para mim. Apenas aquele olho azulado, gélido, fez com que todo meu corpo estremecesse.

o coracao delator
O pesadelo no conto clássico de Poe. Imagem: Portal Sobrenatural

Não mencionei anteriormente que desenvolvi uma sensibilidade auditiva excepcional? Naquele momento preciso, identificava um batimento rítmico, semelhante ao tiquetaque de um relógio percebido através de paredes espessas. Reconheci imediatamente: era o pulsar cardíaco do velho. Esforcei-me para manter a compostura, mas a cadência tornava-se progressivamente mais audível. O pavor que dominava o idoso devia ser incomensurável. A intensificação daquele som amplificava minha irritação, transformando-a em algo quase insuportável. Contudo, não era meramente irritação. Na quietude noturna, na escuridão opressiva daquele quarto, minha irritação converteu-se em pavor – pois as batidas tornaram-se tão ensurdecedoras que temia serem ouvidas além daquelas paredes. O momento decisivo havia chegado! Precipitei-me para o interior do aposento, bradando: “Seu fim chegou!” O ancião emitiu um clamor apavorante quando me lancei sobre ele, pressionando firmemente as cobertas contra seu rosto. Seu coração persistia em bater; no entanto, sorri ao pressentir que meu objetivo seria alcançado. Após intermináveis minutos, as pulsações cessaram definitivamente. O velho partira. Retirei os cobertores e posicionei meu ouvido sobre seu peito. Silêncio absoluto. Confirmado! Estava morto! Inerte como rocha. Aquele olho jamais voltaria a me importunar!

Questionam minha sanidade? Deveriam ter observado a meticulosidade com que ocultei o cadáver para impossibilitar sua descoberta. Inicialmente, separei a cabeça do tronco, depois desmembrei os braços e pernas. Tomei precauções extraordinárias para que nenhuma gota sanguínea contaminasse o assoalho. Removi três tábuas específicas que compunham o piso, depositei cuidadosamente os fragmentos corporais no espaço vazio e reposicionei as madeiras com tamanha precisão que nenhum olhar humano, por mais perspicaz, poderia detectar qualquer alteração.

Ao finalizar essa tarefa minuciosa, percebi uma movimentação junto à entrada principal. O relógio marcava quatro horas matinais, embora a escuridão ainda predominasse. Desci tranquilamente para atender. Deparei-me com três investigadores policiais. Um vizinho havia reportado o grito do idoso às autoridades; estes agentes compareceram para realizar averiguações e inspecionar o imóvel.

Acolhi cordialmente os oficiais. Expliquei-lhes que o som escutado provinha de mim mesmo, resultado de um pesadelo inquietante. Informei que o proprietário realizava uma visita campestre a um conhecido. Guiei-os pessoalmente por todas as dependências, incentivando-os a examinar cada detalhe minuciosamente. Finalmente, conduzindo-os ao aposento da vítima, propus descontraidamente que descansassem ali enquanto conversávamos.

Minha atitude serena e despreocupada convenceu plenamente os policiais sobre minha inocência. Estabelecemos um diálogo amigável. Entretanto, mesmo correspondendo adequadamente, interiormente ansiava por sua partida imediata. Uma cefaleia intensa me acometeu, acompanhada por um zumbido peculiar. Aumentei minha loquacidade e velocidade de fala. O ruído tornava-se progressivamente mais distinto. Ainda assim, os oficiais permaneciam conversando tranquilamente.

Repentinamente, compreendi que aquela sonoridade não se originava internamente em minha mente. Nesse instante, devo ter empalidecido visivelmente. Minha fala acelerou-se ainda mais, elevando também seu volume. Paralelamente, o som misterioso intensificava-se. Identifiquei claramente: era uma pulsação cadenciada, sutil porém inequívoca, idêntica a um cronômetro percebido através de barreiras físicas – som que reconhecia perfeitamente. A intensidade aumentava continuamente. Por que aqueles homens não partiam? A sonoridade tornava-se ensurdecedora. Levantei-me bruscamente, circulando nervosamente pelo ambiente. Arrastei deliberadamente minha cadeira contra o piso para produzir ruídos que pudessem abafar aquela cadência terrível. Falava praticamente aos gritos. Apesar disso, os oficiais permaneciam sentados, dialogando descontraidamente entre sorrisos. Seria possível que não captassem aquele som?

Não havia dúvidas! Eles escutavam! Estavam plenamente cientes! Agora eram eles que me submetiam a uma encenação cruel. Meu sofrimento ultrapassava limites suportáveis – seus sorrisos condescendentes, aquela pulsação interminável. Mais forte, mais forte! Subitamente, alcancei meu limite de resistência. Apontei freneticamente para o assoalho e confessei: “Sim! Sim, executei-o! Arranquem estas tábuas e contemplem a evidência! Eu o matei. Mas… por que seu coração insiste em bater?! Por que não silencia de uma vez?!”

Você pode conhecer outras histórias de terror

Nota Final

A excepcional habilidade narrativa demonstrada por Poe em “O Coração Delator” consiste principalmente em sua capacidade de nos inserir completamente na perspectiva distorcida do protagonista, diluindo as distinções convencionais entre equilíbrio mental e desvario. Esta narrativa propõe uma reflexão profunda sobre os mecanismos psicológicos da culpa e como esta emoção pode manifestar-se de formas surpreendentemente físicas – corporificando-se na percepção auditiva de um coração que, logicamente, deveria estar inerte.

A genialidade desta estrutura narrativa nos convida a importantes questionamentos: seria aquela pulsação cardíaca meramente uma manifestação psicossomática gerada pelo remorso intenso, ou existiria algum elemento sobrenatural operando nos acontecimentos? Quais são os verdadeiros limites da percepção humana quando nossa consciência é dominada pelo peso esmagador de nossos próprios atos moralmente condenáveis?

Você já experimentou alguma situação em que o sentimento de culpa transformou uma percepção trivial em algo aparentemente sobrenatural ou insuportavelmente amplificado?

Tradução livre baseada no conto “The Tell-Tale Heart” de Edgar Allan Poe, obra em domínio público.

Conheça outras contos clássicos de terror no Portal Sobrenatural

Deixe uma resposta

Carregando próxima postagem...
Follow
Barra lateral Procurar Tendências
Popular Agora
Carregando

Efetuando login em 3 segundos...

Inscrevendo-se em 3 segundos...