Edgar Allan Poe (1809-1849) destacou-se como figura central do romantismo norte-americano, revolucionando a literatura de horror psicológico e estabelecendo as bases do moderno romance policial. Aos dois anos tornou-se órfão, e sua existência foi permeada por desventuras, problemas com bebida e constantes dificuldades econômicas, elementos frequentemente presentes em suas criações literárias.
“O Gato Preto”, lançado inicialmente em 1843, foi composto durante fase especialmente conturbada da existência do escritor, quando combatia sua dependência alcoólica e via sua jovem consorte definhar vítima da tuberculose. A narrativa explora temas característicos da obra poeana: sentimento de culpa, arrependimento, deterioração mental gradativa e a certeza do castigo frente às transgressões cometidas.
Curiosamente, Poe nutria grande afeição por felinos e possuía uma gata chamada Catterina, que costumava permanecer sobre seus ombros enquanto trabalhava em seus escritos.
Enfrentarei a morte amanhã. Serei executado em menos de vinte e quatro horas, e neste momento desejo revelar ao universo os acontecimentos que me trouxeram até aqui, com a esperança de que, talvez, meu espírito encontre algum alívio do imenso fardo que o oprime.
Escutem-me! Prestem atenção, e compreenderão como cheguei à ruína.
Em meus anos de infância, possuía uma índole naturalmente bondosa que me fazia apreciar os animais — qualquer tipo de criatura, mas especialmente aqueles que denominamos animais domésticos, seres que aprenderam a conviver junto aos humanos, compartilhando suas residências. Existe algo especial na dedicação dessas criaturas que toca profundamente quem já descobriu, pela vivência, a natureza volúvel e imprevisível do afeto entre pessoas.
Constituí matrimônio cedo. Imaginem meu contentamento ao perceber que minha companheira também nutria paixão por animais. Sem demora, ela incorporou ao nosso lar diversas mascotes das variedades mais encantadoras. Abrigamos aves, alguns peixes dourados, um notável cão e um felino.
Este gato era uma criatura esplêndida, de porte excepcional e pelagem inteiramente preta. Batizei-o Pluto, e tornei-me mais afeiçoado a ele que aos demais bichos. Somente eu cuidava de sua alimentação, e o animal me acompanhava por todos os ambientes da casa. Era inclusive complicado mantê-lo dentro de casa quando eu precisava sair às ruas.
Essa harmoniosa relação perdurou por alguns anos, período durante o qual, infelizmente, minha personalidade sofreu profunda alteração. Iniciei um consumo excessivo de vinho e outras bebidas espirituosas. Com o decorrer do tempo, tornei-me menos afetuoso, facilmente irritável, perdendo a capacidade de sorrir e expressar alegria. Minha esposa — e também meus bichos de estimação, exceto o gato — passaram a experimentar os efeitos dessa transformação em meu temperamento.
Em determinada noite, regressei ao lar extremamente tarde do estabelecimento onde agora consumia bebidas com crescente frequência. Caminhando com passos inseguros, adentrei a residência com dificuldade. Ao entrar, notei — ou julguei notar — que Pluto tentava esquivar-se de minha presença. Tal atitude vinda de um animal que, acreditava eu, ainda mantinha afeição por mim, provocou em minha mente uma cólera desmedida. Senti como se meu juízo abandonasse meu corpo. Retirei um pequeno instrumento cortante de meu casaco e o abri. Em seguida, agarrei a pobre criatura pela região do pescoço e, num único gesto impetuoso, extirpei um de seus olhos aterrorizados!
Gradualmente o felino recuperou-se. O espaço vazio onde antes havia seu olho não era certamente agradável de contemplar, mas aparentemente o animal já não experimentava sofrimento. Como seria previsível, contudo, ele agora fugia apavorado quando me aproximava. Por que não fugiria? No entanto, essa reação apenas intensificava minha irritação. Percebi nascer em meu íntimo uma nova sensação. Quem nunca se flagrou, em inúmeras ocasiões, cometendo atos reprováveis, realizando algo perverso simplesmente por saber que não deveria fazê-lo? Não estamos nós, seres humanos, constantemente impelidos, como que dirigidos por alguma força misteriosa, a violar as normas simplesmente porque as reconhecemos como tais?
Certa ocasião, com frieza calculada, amarrei uma resistente corda ao redor do pescoço do felino e, levando-o à parte inferior da casa, suspendi-o numa das vigas de madeira acima de minha cabeça. Executei este ato com lágrimas brotando de meus olhos, enforquei-o porque sabia que ele havia me amado, porque intuía que não me dera motivo algum para machucá-lo, porque reconhecia que minha ação constituía uma falta tão severa, um pecado tão imperdoável que afastaria minha alma eternamente da graça divina!
Naquela mesma noite, enquanto repousava, escutei através de minhas janelas abertas os clamores da vizinhança. Saltei da cama e constatei que todo o edifício estava tomado pelas chamas. Apenas com extremo esforço minha esposa e eu conseguimos escapar. E quando finalmente estávamos em segurança fora da construção, pudemos apenas observar impotentes enquanto nossa moradia era consumida pelo fogo até restar apenas cinzas. Pensei no felino enquanto contemplava o incêndio, no gato cujo corpo sem vida eu havia deixado suspenso no porão. Parecia-me quase que o animal havia, de maneira sobrenatural, provocado o incêndio para fazer-me pagar por minha crueldade, para obter sua vingança contra mim.
As semanas transformaram-se em meses, e eu não conseguia afastar as lembranças do gato de minhas reflexões. Numa determinada noite, encontrava-me no estabelecimento, bebendo como de costume. No canto mais afastado, avistei um objeto escuro que havia passado despercebido anteriormente. Aproximei-me para investigar. Tratava-se de um felino, extraordinariamente semelhante a Pluto. Toquei-o gentilmente e acariciei seu dorso com suavidade. O animal ergueu-se e pressionou suas costas contra minha mão.
Subitamente, despertou em mim o desejo de possuir aquela criatura. Propus comprá-lo do proprietário do estabelecimento, mas este afirmou jamais ter visto tal animal antes. Ao deixar o local, o felino seguiu-me, e permiti que continuasse. Logo tornou-se mascote tanto de minha esposa quanto minha.
Na manhã posterior à sua chegada, contudo, descobri que este gato, assim como Pluto, possuía apenas um olho. Como não havia percebido tal característica na noite precedente? Este fato apenas intensificou o carinho de minha esposa pelo animal. Eu, entretanto, comecei a desenvolver uma crescente repulsa pela criatura. Minha antipatia crescente parecia apenas fortalecer a afeição do bicho por mim. Ele me acompanhava, seguia-me por todos os cantos, incessantemente. Quando me sentava, acomodava-se sob minha cadeira. Ao levantar-me, introduzia-se entre minhas pernas quase me desequilibrando. Qualquer que fosse meu destino, lá estava ele. Durante o sono, era atormentado por imagens suas. E começou a florescer em mim um ódio intenso por aquele gato!
Em certo dia, minha consorte chamou-me do andar inferior da velha edificação onde agora éramos forçados a residir. Enquanto descia os degraus, o felino, seguindo-me como sempre, cruzou rapidamente minhas pernas quase provocando minha queda.
Tomado por fúria repentina, empunhei um utensílio cortante e golpeei impetuosamente na direção do animal. Prontamente minha esposa estendeu seu braço impedindo o movimento. Tal intervenção apenas amplificou minha fúria e, num ato impensado, voltei-me e cravei a lâmina profundamente em seu peito! Ela desabou silenciosamente, sem emitir qualquer som.
Dediquei alguns momentos à procura do felino, mas este havia desaparecido. Tinha assuntos mais urgentes a resolver, pois sabia ser necessário dar destino ao corpo, com presteza. De súbito, observei uma região na parede do porão onde alguns tijolos haviam sido acrescentados para bloquear uma antiga lareira em desuso. A estrutura não era particularmente robusta, e percebi que poderia facilmente remover aqueles blocos. Atrás deles encontrei, como já suspeitava, um espaço suficientemente amplo para acomodar o cadáver. Com considerável esforço, depositei o corpo naquele recesso e cuidadosamente reposicionei os tijolos. Senti grande satisfação ao constatar que seria absolutamente impossível para qualquer pessoa perceber que qualquer alteração havia sido feita naquela seção da parede.
O tempo avançou. Continuava sem sinais do gato. Alguns indivíduos inquiriram sobre o paradeiro de minha esposa; respondi-lhes com naturalidade. Então, certo dia, vários agentes da autoridade apresentaram-se. Seguro de que nada poderiam descobrir, convidei-os a entrar e os acompanhei durante suas investigações.
Por fim, examinaram minuciosamente o porão. Observei-os com tranquilidade e, como previsto, nada identificaram. Contudo, quando iniciavam seu retorno pelas escadas, senti-me dominado por impulso inexplicável de revelar-lhes, de demonstrar-lhes que eu havia triunfado.
“As paredes desta construção”, declarei, “são extraordinariamente sólidas; trata-se de uma residência antiga de qualidade superior”. E enquanto pronunciava estas palavras, golpeei com minha bengala precisamente o ponto da parede que ocultava o corpo de minha esposa. Instantaneamente, experimentei uma sensação gélida percorrendo minha espinha quando ouvimos emergir da própria estrutura um grito horripilante.
Por um breve instante, os agentes permaneceram atônitos, olhando-se mutuamente. Em seguida, com rapidez, começaram a deslocar os tijolos e, em poucos momentos, depararam-se com o cadáver de minha esposa, enegrecido pelo sangue ressecado e exalando odores de decomposição. Sobre a cabeça do corpo, com seu único olho incandescente e as mandíbulas escancaradas de tonalidade sanguínea, encontrava-se o felino, emitindo o berro de sua retribuição!
Veja mais em histórias de terror
“O Gato Preto” demonstra a genialidade de Poe na exploração dos recônditos da mente humana e no horror que não reside em monstros ou entidades sobrenaturais, mas nas profundezas do próprio ser. O protagonista-narrador não é condenado por circunstâncias externas, mas por seus próprios impulsos autodestrutivos e pela incapacidade de controlar seus demônios internos.
A narrativa funciona também como poderosa metáfora sobre como nossas faltas e transgressões, por mais que tentemos ocultá-las, encontram meios de manifestar-se e nos expor. É admirável como Poe utiliza o felino como representação da consciência do narrador, uma lembrança persistente de seus erros que, apesar de suas tentativas de eliminá-la, sempre retorna.
E você, caro leitor, já experimentou essa compulsão inexplicável de fazer precisamente aquilo que sabe não ser correto? De que maneira enfrentou tal situação?
Tradução livre baseada no conto “The Black Cat” de Edgar Allan Poe, obra em domínio público.
Conheça mais contos clássicos de terror no Portal Sobrenatural