O Retrato Oval: O Sacrifício em Nome da Arte

Edgar Allan Poe (1809-1849), mestre da narrativa de horror psicológico americana, viveu uma existência marcada por tragédias pessoais – da orfandade precoce até seu misterioso falecimento. Sua obra explora constantemente as fronteiras entre lucidez e alucinação, existência e finitude.

“O Retrato Oval” apareceu primeiramente como “Life in Death” na Graham’s Lady’s and Gentleman’s Magazine em 1842, recebendo revisões para sua publicação definitiva em 1845. Esta narrativa concisa, concebida durante o florescimento do movimento romântico nos Estados Unidos, exemplifica a fascinação de Poe por belezas efêmeras e pela tênue fronteira separando criação artística e existência real – temas constantes em seus escritos.

Conto “O Retrato Oval” de Edgar Allan Poe

O imponente casarão onde meu servo ousou invadir à força – preferindo isso a me deixar passar a noite ao ar livre em meu estado gravemente ferido – era uma daquelas construções que combinam sombra e magnificência, erguendo-se há gerações nos Apeninos, tanto na geografia física quanto nos romances góticos da Sra. Radcliffe. Parecia ter sido desocupado recentemente, de forma provisória. Acomodamo-nos num dos aposentos menores e mais modestamente decorados, situado numa torre afastada da edificação principal.

o retrato oval
No silêncio opressivo do quarto antigo. Imagem: Portal Sobrenatural

A decoração apresentava riqueza, embora desgastada pelo tempo. Tapeçarias revestiam as paredes, entremeadas por diversos brasões heráldicos e uma coleção surpreendentemente numerosa de pinturas contemporâneas em elaboradas molduras douradas. Estas obras, distribuídas não apenas nas superfícies principais dos muros, mas também em vários nichos formados pela arquitetura excêntrica do casarão, despertaram em mim um interesse profundo – talvez influenciado por meu estado febril. Instrui Pedro a fechar as pesadas venezianas, pois já havia anoitecido, a acender as velas de um imponente candelabro próximo à minha cabeceira e a abrir completamente as cortinas franjadas de veludo negro que envolviam o leito. Meu intuito era, se não conseguisse adormecer, ao menos alternar entre a observação daquelas obras e a leitura de um pequeno tomo encontrado sobre o travesseiro, contendo descrições e análises das pinturas.

Dediquei-me longamente à leitura e à contemplação. As horas transcorreram céleres, e a meia-noite se instalou. A posição do candelabro me incomodava e, esticando o braço com certo esforço, em vez de perturbar meu criado que dormia, reposicionei-o para iluminar melhor as páginas.

o retrato oval
Bela, imóvel, eterna. Imagem: Portal Sobrenatural

Este movimento produziu um resultado inesperado. A luz das muitas velas agora atingia um nicho até então ocultado na penumbra por um dos postes da cama. Revelou-se, sob intensa iluminação, uma pintura que não havia notado anteriormente – o retrato de uma jovem mulher no auge de sua beleza. Observei-a rapidamente e fechei os olhos. Por que reagi assim não ficou claro nem para mim mesmo inicialmente. Contudo, mantendo as pálpebras cerradas, refleti sobre meu impulso. Fora uma reação instintiva para ganhar tempo – para certificar-me de que minha visão não me enganava, para acalmar minha imaginação antes de um novo olhar, mais sereno e atento. Momentos depois, encarei novamente a obra.

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Ele confundia arte e vida, até que o retrato o encarou de volta. Imagem: Portal Sobrenatural

Não havia dúvida sobre a precisão de minha percepção; o súbito clarão das velas sobre aquela tela dissipou a letargia que dominava meus sentidos, trazendo-me imediatamente à plena consciência.

O retrato, como mencionei, mostrava uma jovem mulher. Era apenas um busto, executado no estilo conhecido como “vinheta”, semelhante aos retratos característicos do artista Sully. Os braços, o colo e mesmo as extremidades dos radiantes cabelos fundiam-se gradualmente na densa porém indefinida sombra que servia de fundo. A moldura, de formato oval, exibia douramento luxuoso e ornamentos mouriscos. Como obra artística, a pintura era extraordinariamente primorosa. Entretanto, não foi nem a excelência técnica nem a indescritível beleza da figura retratada que me impressionou tão profundamente. Tampouco poderia ser que minha imaginação, despertada do torpor, confundira aquela imagem com uma pessoa viva. Percebi imediatamente que as características da composição, o estilo em vinheta e a natureza da moldura eliminavam tal possibilidade – impedindo mesmo sua consideração momentânea.

Meditando intensamente sobre estes aspectos, permaneci aproximadamente uma hora, parcialmente sentado, parcialmente reclinado, com o olhar fixo na pintura. Finalmente, compreendendo o segredo de seu efeito, voltei a deitar-me. Havia descoberto que o fascínio da obra residia numa expressão de vitalidade absolutamente convincente, que inicialmente me surpreendeu, depois me confundiu e finalmente me subjugou e assombrou. Com respeitoso temor, devolvi o candelabro à sua posição original. Afastando assim a fonte de minha perturbação, busquei avidamente o volume contendo informações sobre as pinturas e suas histórias. Localizando a referência ao retrato oval, li as enigmáticas palavras que seguem:

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A beleza imortalizou-se no retrato. Imagem: Portal Sobrenatural

“Tratava-se de uma donzela de beleza incomparável, tão radiante quanto alegre. Funesta foi a hora em que avistou, amou e desposou o pintor. Ele – apaixonado, estudioso, austero – já possuía uma noiva em sua Arte; ela – donzela de beleza incomparável, tão radiante quanto alegre – era pura luminosidade e graça, travessa como um filhote de gazela, amando tudo ao seu redor, detestando apenas a Arte, sua rival, receando somente a paleta, os pincéis e aqueles estranhos instrumentos que a privavam da presença do amado. Foi, portanto, terrível para a jovem senhora ouvir o pintor manifestar seu desejo de retratar também sua recém-desposada esposa. Sendo humilde e obediente, porém, sentou-se pacientemente durante semanas na câmara elevada e sombria da torre, onde apenas do alto filtrava-se luz sobre a pálida tela. O artista, contudo, exultava com seu trabalho, que avançava hora após hora, jornada após jornada. Era um homem ardente, excêntrico e contemplativo, perdendo-se em devaneios, de modo que não notava como aquela iluminação espectral na torre isolada consumia a vitalidade e o ânimo de sua esposa, cujo definhamento era perceptível a todos, exceto a ele próprio. No entanto, ela continuava a sorrir sem queixas, pois percebia que seu marido (de grande renome) encontrava prazer intenso em sua tarefa, trabalhando incansavelmente para capturar a imagem daquela que tanto o amava, mas que enfraquecia progressivamente. Alguns observadores da tela comentavam em voz baixa sobre a extraordinária semelhança, considerando-a tanto uma maravilha quanto uma demonstração tanto da habilidade do pintor quanto de seu profundo amor pela modelo. Quando a obra aproximava-se de sua conclusão, ninguém mais foi admitido na torre; o pintor havia se tornado obsessivo em sua dedicação ao trabalho, raramente desviando o olhar da tela, nem mesmo para contemplar o rosto de sua esposa. Não percebia que os pigmentos que aplicava à tela eram extraídos das faces daquela que se sentava próxima a ele. Após muitas semanas, restando apenas uma pincelada nos lábios e um toque de cor nos olhos, o espírito da dama reviveu momentaneamente, como uma chama prestes a extinguir-se. Então foi aplicada a pincelada final, acrescentado o último toque; por um instante o artista permaneceu em contemplação extasiada diante de sua criação, mas no momento seguinte, ainda observando, estremeceu, empalideceu e, tomado de pavor, exclamou em voz alta ‘Isto é verdadeiramente a própria Vida!’, virando-se subitamente para sua amada: — Ela havia partido.”

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Nota Final

“O Retrato Oval” nos propõe uma meditação sobre o custo da expressão artística e da obsessão criativa. Através de sua narrativa magistral, Poe constrói uma metáfora sobre como a busca pela excelência na arte pode devorar não só o criador, mas também aqueles que o circundam. O pintor, em sua compulsão por aprisionar a essência viva de sua esposa na tela, involuntariamente extrai sua força vital – uma poderosa analogia de como a representação artística por vezes se nutre da própria realidade que tenta capturar.

A estrutura narrativa em camadas – um relato dentro de outro relato – amplifica a ressonância emocional da história. Temos primeiro o narrador convalescente descobrindo o quadro num castelo deserto; em seguida, a trágica história por trás da pintura. Este recurso intensifica a experiência do horror, pois compartilhamos com o narrador a descoberta gradual e o crescente assombro diante da obra.

Que limites éticos deveriam ser impostos à criação artística? Até onde podemos justificar sacrifícios – pessoais ou alheios – em nome da expressão criativa? São questionamentos levantados por Poe que mantêm sua pertinência em nossa era contemporânea, tão obcecada por imagens e representações.

Tradução livre baseada no conto “The Oval Portrait” de Edgar Allan Poe, obra em domínio público.

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